sexta-feira, 11 de maio de 2007

Parece-me que o gênio de um poeta, em luta com a inspiração, devia arrancar do seio d'alma algum canto celeste, alguma harmonia original, nunca sonhada pela velha literatura de um velho mundo.
Digo-o por mim: se algum dia fosse poeta, e quisesse cantar a minha terra e as suas belezas, se quisesse compor um poema nacional, pediria a Deus que me fizesse esquecer por um momento as minhas idéias de homem civilizado. Filho da natureza embrenhar-me-ia por essas matas seculares; contemplaria as maravilhas de Deus , veria o sol erguer-se no seu mar de ouro, a lua deslizar-se no azul do céu; ouviria o murmúrio das ondas e o eco profundo e solene das florestas. E se tudo isto não me inspirasse uma poesia nova, se não desse ao meu pensamento outros vôos que não esses adejos de uma musa clássica ou romântica, quebraria a minha pena com desespero, mas não a mancharia numa poesia menos digna de meu belo e nobre país. Brasil, minha pátria, por que com tantas riquezas que possuis em teu seio, não dás ao gênio de um dos teus filhos todo o reflexo de tua luz e de tua beleza ? Por que não lhe dás as cores de tua paleta, a forma graciosa de tuas flores, a harmonia das auras da tarde ? Por que não arrancas das asas de um dos teus pássaros mais garridos a pena do poeta que deve cantar-te ?
ALENCAR, José de. Cartas sobre a Confederação dos Tamoios. Apud COUTINHO, A. Caminhos do pensamento crítico.Rio de Janeiro/Brasília: Pallas/INL, 1980. V.1 p.81
Como se constrói uma identidade social ? Como um povo se transforma em Brasil ? A pergunta, na sua discreta singeleza, permite descobrir algo muito importante. É que no meio de uma multidão de experiências dadas a todos os homens e sociedades, algumas necessárias à própria sobrevivência, como comer, dormir, morrer, reproduzir-se etc. , outras acidentais ou superficiais: históricas, para ser mais preciso - o Brasil foi descoberto por portugueses e não por chineses, a geografia do Brasil tem certas características como as montanhas na costa do Centro-Sul, sofremos pressão de certas potências européias e não de outras, falamos português e não francês, a família real transferiu-se para o Brasil no início do século XIX etc. Cada sociedade (e cada ser humano) apenas se utiliza de um número limitado de "coisas" (e de experiências) para construir-se como algo único, maravilhoso, divino e "legal" ... Sei, então, que sou brasileiro e não norte-americano, porque gosto de comer feijoada e não hambúrguer; porque sou menos receptivo a coisas de outros países, sobretudo costumes e idéias; porque tenho um agudo sentido de ridículo para roupas, gestos e relações sociais; porque vivo no Rio de Janeiro e não em Nova York; porque falo português e não inglês; porque, ouvindo música popular, sei distinguir imediatamente um frevo de um samba; porque futebol para mim é um jogo que se pratica com os pés e não com as mãos; porque vou à praia para ver e conversar com os amigos, ver as mulheres e tomar sol, jamais para praticar um esporte; porque sei que no carnaval trago à tona minhas fantasias sociais e sexuais; porque sei que não existe jamais um "não" diante de situações formais e que todas admitem um "jeitinho" pela relação pessoal e pela amizade; porque entendo que ficar malandramente "em cima do muro" é algo honesto, necessário e prático no caso do meu sistema; porque acredito em santos católicos e também nos orixás africanos; porque sei que existe destino e, no entanto, tenho fé no estudo, na instrução e no futuro do Brasil; porque sou leal a meus amigos e nada posso negar a minha família; porque, finalmente, sei que tenho relações pessoais que não me deixam caminhar sozinho neste mundo, como fazem os meus amigos americanos, que sempre se vêem e existem como indivíduos! Pois bem: somando esses traços, forma-se uma seqüência que permite dizer quem sou, em contraste com o que seria um americano, aqui definido pelas ausências ou negativas que a mesma lista efetivamente comporta. A construção de uma identidade social, então, como a construção de uma sociedade, é feita de afirmativas e de negativas diante de certas questões. Tome uma lista de tudo o que você considera importante - leis, idéias relativas a família, casamento e sexualidade; dinheiro; poder político; religião e moralidade; artes; comida e prazer em geral - e com ela você poderá saber quem é quem.
DaMATTA, Roberto. 1986. O que faz o brasil, Brasil ?Rio de janeiro: Rocco, p.16-17